"o ovo é a véspera da forma"
Uma leitura de "Povoemas e outras nascentes", de Nadja Rodrigues de Oliveira
Percebi que os textos que escrevo aqui são movidos por leituras e, especialmente, leitura de livros de poemas, que nem considero ser o gênero literário que mais leio. Talvez a proporção seja algo da ordem de, a cada livro de poemas, leio uns dois de prosa. Isso porque prefiro ler prosa no Kindle e faço por horas antes de dormir. Já os de poemas, leio mais de dia, entre um ou outro afazer em casa. E tenho muita dificuldade, porque, com a miopia alta, é cada vez mais difícil ficar por horas lendo em papel, fora que também vai ficando mais restrita a hora em que a luz do sol não me incomoda tanto. Mesmo assim, são estes os livros que me convocam a escrever impressões. Curioso. Uma hipótese é que, como no doutorado eu pesquiso livros em prosa, pense que o Substack não é o espaço da obrigação, mas da experimentação, da tentativa e da postura ética de ler poesia contemporânea com o esforço de ir além dos nomes já conhecidos, nomes menos evidentes entre os listados em prêmios. Faço aqui a minha própria forma de reconhecer esses belos e incansáveis trabalhos cujo encontro me transforma.
A certo momento da leitura de “Povoemas e outras nascentes”, livro de Nadja Rodrigues de Oliveira, publicado pela 7Letras neste ano, eu já sabia que ia escrever depois de finalizada a leitura. E eu queria fazer um texto tão sereno quanto o tom do livro. Calmo, gentil. Uma escrita bonita para se aprender: aproximar o coração nas coisas, ter espaço para se mexer, levantar a cabeça, ouvir o ritmo de cada palavra, “a música do sangue”, diria Alejandra Pizarnik para se referir ao que resta e reside no abandono — isso também pode ser musical. O ritmo do silêncio, um método de meditação: eis o ovo, que são todas as nascentes e o dom da perda. Já o amor é a fenda, e eis o poema:
Esse poema é assombroso. A primeira palavra já é o verbo, e o tempo presente nos prepara uma cilada com a expectativa da definição, que é totalmente labiríntica. Fico imaginando que a dicção oracular é parecida com a desse poema, para que o consulente precise interpretar a orientação em sua vida. E é mesmo uma questão de vida e de sonho da palavra. É um abrir de passagem, muitas vezes em um movimento violento e doloroso; noutras, musical. A alternância entre corpo, sonho e música indica, ainda, que todas essas palavras não podem estar separadas por significados divergentes, ou sujeitos diferentes: é tudo corpo (e por tudo entenda-se inclusive os poemas, as pedras, a laranja, a ostra).
Acabei comentando logo o último poema do livro porque é uma boa síntese da experiência de leitura: juntar imagens que não necessariamente estariam juntas na nossa imaginação. Criar, mexer com a sintaxe, exigir o retorno, a releitura, desviar o olhar do poema e tentar adentrar no cotidiano já remexido. Esse deslocamento, em grande parte do livro, pode se assemelhar a epigramas ou aforismos (“o ovo é a partida”, p. 109; “crescer é para dentro / de novas moradas”, p.77), ou/e depois com uma estrutura preditiva (“está para acontecer/ o que já aconteceu”, p. 59 ;“sou o que resta / estou no que virá”, p. 154).
Eu gosto bastante desse estilo, mas considero que a voltagem dos poemas se eleva à força máxima quando aparecem mais pronomes e formas verbais de primeira pessoa do singular. Tem algo do “dizer eu” que me impressiona e vai aparecendo apenas mais para o fim do livro. Vou tentar elaborar a seguir.
É abrindo passagem e pela fissura que o poema surge, e também o “eu”:
“minha avó quem me ensinou
a confiar na vontade
da mão não pode ter medo
da faca nem do tempo” (p.138)
Percebo que a poética de Nadja trabalha muito com o ritmo e cada quebra de verso tem o sentido. Fico imaginando as tentativas até chegar aos poemas publicados. O efeito de um enjambement bem sucedido é visível: o ritmo muda entre o segundo e o terceiro verso dessa estrofe, a partir da quebra de versos inesperada, ressoando como uma conversa real, imprimindo ritmo e lembrando um conselho antigo que resiste à estrutura da língua. É a vontade da mão? Medo da faca ou da mão? Essa ambiguidade é linda.
“abro covas para acordar
os olhos do começo
busco o berço do silêncio
essa voz cavaavisto a intimidade do mundo” (p. 145)
Neste, o efeito é outro, me parece mais como tatear o desconhecido: a imagem de uma voz que cava, qual forma isso tem em cada imaginação? Sem contar na repetição de sons sibilantes e da letra “o” aparecendo repetidamente como um buraco a ser aberto pela palavra até a “intimidade do mundo”.
E o que dizer de: “sou uma oração em marcha” (p. 150)?
Esse é um belo livro de poemas.
Coincidência: comentava com Nadja que demorei muito tempo para avançar em cada poema, e ela me disse que essa era a ideia da estrutura do livro: o título em uma página, o poema na outra – e, muitas vezes, cada página com apenas uma estrofe do poema. Desde então, folheando novamente para escrever esse texto, refiz o caminho do início para poder também ler o silêncio que já havia se imposto de forma intuitiva. Ler devagar, como disse no início do texto. Mais uma coincidência: postei nas redes sociais dois poemas que estão em momentos distintos do livro e ela me contou que um surgiu do outro. Nem vou falar que o livro dela fala sobre nascimentos, quedas e pedras. Mistério sempre há de pintar por aí.
Conheçam:
Maíra, fiquei muito tocada pelo seu texto! Uma moção de escrita pelo silêncio habitado de restos e ressonâncias, leituras que ampliam mais e mais os versos do livro. Quanta matéria vida segue escoando pelas fissuras do seu olhar e fertilizando as formas eclodidas dos poemas. É um privilégio ter sua leitura e receber seu texto-gema! Muito obrigada!
E seguimos pinçando os mistérios pelas frestas entre nós. Beijos