Anos-blues
abro as persianas do escritório nunca antes abertas, faz sombras bonitas na mesa do amigo que canta do meu lado a mesma música que cantei mais cedo sozinha, salta do ar-condicionado um sapo sobre as folhas antigas, um documento com a minha data de aniversário assinado por desconhecidos, embarco domingo passado nas águas mais salgadas do continente, o tempo armando, uma garça azul selvática, uma garça branca engasgada e um urubu de cabeça vermelha rasga a paisagem sem nenhum marulho, só o conforto da corrente de ar, seu redil, e eu falo alto que alguma coisa está, naquele momento, nascendo novamente, como se as coisas pudessem nascer e nascer novamente é ainda algo mais herético de se dizer, e eu já me perguntei em outro tempo se coisas tinham raiz, é a mesma imagem que se repete, esta de quem busca entender o que se chamo de coisa, se é o nome de bichos do mangue, se sou eu mesma, o pré-natal dos cavalos marinhos ou uma ave chamada Encontro. sobre as asas, no encontro: é assim que pronunciam o lugar do nascer do sol. e ainda me sinto mal a semana inteira, febril, canela, ave estranha comendo um fruto estranho da mesma família da canela, amargosa, ayuverda. i’m not uncomfortable feeling weird, disse o homem que desapareceu, e eu entendo o que ele quer dizer. quer dizer que o detalhe estranho e injusto é que é o axiomático, a mão gelada, a falta de café, o atraso no psicotrópico, tudo o que ausenta a palavra – a mesma janela com as persianas abertas me distraindo com os rasantes do sabiá do sertão, que me lembra uma música de chuva, mas não me comovo porque ele não canta, só levanta o rabo, ainda que chova, o tempo arma e desarma tão rápido que não acompanho, apenas durmo demais e me forço a entrar na linhagem daquela que troca os nomes, mas digo ao amado que nunca troque o meu nome, espinhosa, e que é poético quando ele fala sobre olhar cru, que este mês há um alinhamento dos planetas e que está visível a olho nu, uma cientista disse que não tem efeito nenhum nos terráqueos da Terra, mas que era bom levantar o olhar ao céu e pensar que aquela luz é uma energia que se propaga em uma trajetória de milhares de anos-luz de distância, e que nisso desaparecem mesmo as palavras, e que nisso tem algo de uma solidão irrecusável mesmo, alguma coisa de azul e de Spinoza, mas sem essência, só afeto.